sábado, 30 de abril de 2011

A morte de Dorotéia

Uma vez me disseram que escrever era bom. Podia-se fazer tudo com o ato de escrever: criar histórias, expressar uma opinião, defender uma posição. Mas o que mais me intrigou foi o fato dessa pessoa me dizer que se eu quisesse, em minha história, eu poderia até matar alguém. E não é que é verdade! Eu posso matar alguém em minhas histórias.

Queria matar Dorotéia. Queria que ela sofresse toda dor que me fez sentir. Eu que a amava, eu que a amava... Amava tanto quanto uma criança ama seu cobertor, cuidando e o mantendo por perto todo o tempo. E quando tinha de se separar era sempre uma agonia.

Era assim meu amor por Dorotéia. Eu queria cuidar dela, queria que ela fosse poupada de todos os males do mundo. Queria que ela ficasse ao meu lado em todos os momentos e, como se não bastasse, eu agia de forma que ela nunca tivesse dúvidas do quanto eu a amava.

Mas isso não bastou para Dorotéia, ela a quem dediquei minha devoção. De repente, minhas gentilezas soavam para ela como obrigações, meu enorme carinho era visto como insuficiente, minha atenção era irrisória perto de tudo que ela queria expôr-me. Eu não era a mesma pessoa para Dorotéia.

Passou a cobrar-me onipresença. Ela queria que eu resolvesse todas as sua angústias e dores e, quando eu tentava, ela se negava a aceitar. Virara uma vítima (ou será que sempre foi e eu nunca reparei) que precisava ser resgatada a toda hora, mas meus esforços não eram suficientes.

Isso me cansou! eu não sabia o que fazer, eu não podia fazer! Eu não era onipotente - isso me frustrava. Dorotéia me fazia ver, constantemente, que não eu não podia, que eu não conseguia fazer tudo ser perfeito. Pior! Dorotéia não reconhecia meu amor por ela e isso me doeu...

Quando, um dia, numa dessas noitadas paulistanas regadas a muito vinho, ela, muito nervosa, me disse que eu não tinha amor, que eu não me importava com os problemas dela, que eu não tinha solidariedade com ela, isso me machucou...

Como alguém poderia ter tamanha ingratidão? como duvidar do meu amor? será que vão acreditar nisso? será que é isso que me dói? o fato das pessoas terem a mesmo impressão de mim? Dorotéia me fez infeliz naquela noite.

O rancor tomou conta de mim! não podia perdoar Dorotéia! Ela era injusta, dissimulada! Agora eu a odiava (mas não me atraveria a dizer isso em voz alta). Dorotéia me fazia enxergar o que eu não queria ver: que não era tão forte e inabalável quanto pensava. Ele me mostrava que eu não havia atingido a perfeição, pelo contrário! estava longe disso. Ela fez com que aparecesse em meu rosto, diante dos olhos de quem quisesse ver, as minhas falhas, minhas limitações, minha fragilidade.Pior! ela não só as mostrou como me levou a pensar que essas falhas poderiam fazer com que as pessoas se afastassem de mim. Como eu a odeio por isso!!!

Passou-se o tempo. Dorotéia, então, me pede perdão. Na verdade, ela não me pediu perdão. Ela apenas discorreu por horas e horas os motivos pelos quais a levaram a ter a reação que tivera. Eu a ouvi e a perdoei. Mesmo ela não tendo me pedido perdão. Mesmo ela não tendo me dito que se arrependeu. Era apenas uma justificativa, cheia de emoções que tinham a ver com ela, mas que não falava do outro, não falava de mim.

Acho que Dorotéia tentou me convencer que por ela ter sofrido tanto em sua infância, ter passado por situações tão complicadas, ela reagira mal comigo nos últimos tempos. Mais do que isso! quis me mostrar que eu deveria absolvê-la, pois senão, eu seria tudo aquilo que ela disse para nosso colega naquela noite: ela, uma vítima e eu, um vilão.

Dorotéia me impôs o meu perdão e eu, como sempre tive medo de me reconhecer como vilão, a perdoei. Ela sabia disso, eu é que não sabia...

Eu não tinha o mesmo lugar na vida de Dorotéia, ela também não tinha mais na minha. Isso deveria pôr fim a nossa relação. Poderíamos ter começado outra, mais amigável, respeitosa. Podia. Mas eu me incomodava com a presença dela e, acredito, que incomodava a minha presença para ela. Triste ver como se caminharam as coisas. Éramos unha e carne, almas gêmeas, agora não suportávamos estar no mesmo espaço.

Meses depois, já não guardava tanto rancor por Dorotéia, estava em outra! me preocupava com outras coisas. Ela já não tinha grande peso na minha vida, não me abalava vê-la. Mas Dorotéia não pensava do mesmo jeito que eu. Continuava a querer rivalizar comigo e quis, novamente, impôr sua presença na minha vida! Como eu a odeio por isso!

Dorotéia passara dos limites! Ela me fez enxergar o que era insuportável para mim. Aquilo que durante toda a minha vida eu lutei para não ver. Dorotéia me colocara de fora da vida que eu havia construído para mim. Me fez assistir o que é está de fora de onde eu mais desejava estar e se colocou nesse lugar que era meu por direito. Dorotéia me humilhou e eu a odeio por isso!

Meu ódio não cabia em mim! Eu precisava descarregá-la em alguma coisa, em algum lugar, em alguém. Eu queria que ela morresse, eu queria pisar em cima do seu rosto e deformá-lo, eu queria arrancar seus cabelos e humilhá-la como ela me humilhou! Eu queria, ah! como queria...

Meu mundo se ruiu por culpa de Dorotéia, eu não sabia para onde ir, o que fazer. Eu só podia esperar, esperar a dor e o ódio passarem para reorganizar a minha vida e resignificá-la.

Anos depois, não posso lhes dizer que meu ódio por Dorotéia desapareceu por completo. Como poderia ser? não é fácil deixar de odiar alguém que provoca tantas inquietações e desamparo. Não é fácil esquecer que ela me fizera ver o que mais me apavora. Não é fácil e por isso eu quis matá-la. As vezes acho que ainda quero...

Por não poder matá-la sem que me julguem e/ou condene meu ato de brutalidade, resolvi escrever para poder liberar a raiva e o desejo de tirar a vida de Dorotéia. Isso me ajuda a experimentar - pelo menos em fantasia - um mundo sem Dorotéia.

É isso! Dorotéia agora está morta, atingida por um raio na rua Augusta, (bem próximo do cruzamento com a avenida Paulista) que a partiu no meio. E, de onde jorrou toda perversidade que habitava seu interior, brotou capim, daqueles que crescem no cimento, pois não poderia nascer nada de poético de um ser tão repugnante...

É, agora a vida voltou a ser bela!!

3 comentários:

  1. adorei a morte de dorotéia!! adorei. adorei o nome dorotéia e o capim brotando dela!!

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  2. cadê as outras mortes?? eu quero mais!!

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  3. rsrsrsrs. preciso pensar em mais algumas, né? ando muito pacífica, rsrsrs

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